Total de visualizações de página

sábado, 25 de fevereiro de 2012

A CALIFÓRNIA


"CALIFÓRNIA"
Foi o nome dado à grande e rica fazenda de criação no sertão de Quixadá, pertencente ao Sargento-Mor Miguel Francisco de Queiroz Lima, um dos “Irmãos Queiroz”, casado com sua prima, D. Maria da Penha (Lopes Barreira) Queiroz, irmã de D. Joanna Batista de Queiroz Barreira, viúva de Luciano (ver “Bodas de Sangue”).

“Pelo ano de 1880, em pleno sertão cearense, na freguesia de Quixadá e Ribeira do Choró, florescia a Califórnia, grande fazenda de criação e fértil sítio de lavoura, com engenho de cana, aviamentos de farinha e abundantes colheitas de algodão e de cereais, provida de bom açude e servida por numerosa escravatura.
Fundada havia cinquenta anos, pelo sargento-mor Miguel Francisco de Queiroz e sua mulher Maria da Penha de Queiroz, diligentes e econômicos, a rica fazenda prospera notavelmente durante os trinta e um anos de invernos regulares, intercalados das secas de 1845 e 1877, o mais longo período de fartura observado na região.”
Esperidião de Queiroz Lima  –  Reminiscências

Nos tempos coloniais quando a FAMÍLIA representava o principal elemento de organização econômica e social, fortemente congregada para a conquista de seus haveres e defesa de seus direitos, as amizades e alianças eram consolidadas pelos casamentos, que constituíam assim verdadeiros pactos de união e de solidariedade.
Entre os filhos do Capitão Antonio Pereira de Queiroz Lima, da Fazenda Casa Forte, e os filhos do Tenente Ignácio Lopes da Silva Barreira, do Tapuiará, havia, alem do parentesco, pois eram primos carnais, muita estima e convivência, porquanto se visitavam assiduamente.
Dessa amizade resultaram três casamentos entre as famílias QUEIROZ e BARREIRA: Antonio Duarte de Queiroz Lima, Miguel Francisco de Queiroz Lima e Mariana de Jesus Queiroz Lima, casaram-se respectivamente com os irmãos Maria Ignácia Lopes Barreira, Maria da Penha Lopes Barreira e Balthazar Lopes Barreira.

Miguel Francisco de Queiroz Lima e
D. Maria da Penha (Lopes Barreira) Queiroz,
foram os fundadores da fazenda Califórnia.

A CALIFÓRNIA – o ouro
A fazenda Califórnia, durante muitas décadas foi considerada a maior e a mais importante fazenda da região, onde seus donos levavam uma vida patriarcal, assistidos por um capelão e servidos por escravaria privilegiada pelo trato magnânimo que lhe era dispensado, em retribuição ao inestimável proveito econômico advindo de seu trabalho.
Miguel Francisco e sua mulher Maria da Penha haviam se estabelecidos inicialmente no Junco, fazenda igualmente rica e produtiva, na ribeira do rio Sitiá, divisando com as águas do rio Choró, no sertão de Quixadá. Depois ele adquiriu umas terras vizinhas às suas extremas, a sesmaria pertencente a Domingos Lopes Delgado, ficando assim possuidor de enorme extensão de terras propícias para plantações e criação de gado.
O casal de fazendeiros empenhou-se com entusiasmo a fim de estabelecerem ali uma bela propriedade. E dentro em pouco estava formado um verdadeiro povoado, ao lado da capela construída em 1855.
As terras férteis produziam em tão grande abundancia algodão, cana de açúcar, mandioca e cereais, que na vizinhança só se falava na riqueza dessas terras. Um dia, um dos sobrinhos do velho Miguel Francisco, chamado José Severiano de Queiroz, o mais velho da irmandade de Santa Maria, que morava na Fazenda Barro Vermelho, depois vendida ao Coronel José Marinho Falcão (meu bisavô paterno), comentou que o tio havia descoberto uma “nova Califórnia”, mais rica que a da América do Norte que estava a produzir tanto ouro... E logo que o tio soube desses comentários, agradeceu pela lembrança da comparação e disse:

“– Eu estava mesmo procurando um nome bonito para a minha fazenda, pois fica sendo – Califórnia!”

E assim surgiu a fazenda e o novo povoado de Califórnia, sob a proteção e orago de São Francisco de Assis, padroeiro da capela.
Miguel Francisco e D. Maria da Penha não tiveram filhos. Diligentes, trabalhadores e parcimoniosos, possuíam muitos escravos que viviam como libertos, formando suas famílias que habitavam confortáveis moradias, instaladas em casas de tijolo e telha, caiadas e ladrilhadas. Bem alimentados viviam satisfeitos, trabalhando com muito gosto e total dedicação a seus senhores.
Era grande a renda e muito pouco a despesa. Os escravos produziam todos os alimentos consumidos ali e os pequenos utensílios usados nos serviços da fazenda. Ferreiros, fiandeiros e tecelões escravos produziam as ferragens necessárias, fiavam e teciam os panos de algodão que todos vestiam, inclusive as redes de dormir. Até o sal era trazido das praias de Cascavel (hoje Beberibe) onde viviam seus primos praianos, no sítio "Lucas" e no sítio "Bom Jardim".
Miguel Francisco não pegava em dinheiro de papel, “que era sujo”, nem de cobre, “que azinhavrava”. Era condição de toda transação ou venda que ele fazia: que o pagamento fosse feito em OURO ou PRATA, que ele recebia em moedas da época, em jóias ou em barra. E nunca se soube que o velho fazendeiro houvesse despendido qualquer parcela desses metais preciosos continuamente arrecadados.
Na falta de bancos e caixas-fortes, a maneira mais segura de se guardar toda essa riqueza acumulada em anos de trabalho e economia, seria enterrar em um local secreto. Seu cofre era a princípio uma caixa de ferro que logo foi substituída, segundo a versão corrente da época, por uma mala feita de cedro, coberta com sola e enfeitada com taxas de metal amarelo, que foi enterrada em lugar ignorado.  O segredo do esconderijo só era sabido, alem dos donos, pelo velho e fiel escravo João Miguel, que havia jurado pela salvação de sua alma guardar sigilo absoluto até a morte.
Deve existir na fazenda Califórnia, em algum lugar, uma mala velha enterrada, cheia de ouro, prata e muitas jóias, cujos proprietários levaram para o túmulo esse segredo.
Assim, se antes a Califórnia não possuía ouro no subsolo, este o recebeu depois e talvez ainda hoje o guarde em suas entranhas...

A CALIFÓRNIA – a herança
Arcelino de Queiroz Lima (avô de Arcelino Queiroz de Mattos Brito, meu avô materno), era sobrinho do velho Miguel Francisco, filho de seu irmão Pedro de Queiroz Lima e de Francisca Helena Rosa de Lima, residentes no Sítio Bom Jardim, em Cascavel (hoje município de Beberibe). Nascido em 22/01/1837, na antiga casa do Sítio Bom Jardim, formou-se em Direito pela faculdade de Recife no final de 1871. Em 20/01/1872, às vésperas de completar seus 35 anos, casou-se com Rachel de Queiroz Lima, filha do coronel Baptista de Guaramiranga. Arcelino fundou o “Gymnásio Cearense” na Praça dos Voluntários, em Fortaleza, que funcionou em um prédio particular onde depois se estabeleceu o Liceu. Ingressou no serviço público e exerceu vários cargos por um breve tempo, pois preferiu entrar para a magistratura. Nomeado Juiz Municipal de Canindé, foi logo promovido a Juiz de Direito de Pacatuba e passou a residir numa bela propriedade, localizada no sopé da Serra da Aratanha.
Certo dia achava-se o Dr. Arcelino em seu pitoresco sítio quando ali chegou um cavaleiro trazendo-lhe um recado:

“– Eu venho da Califórnia e trago um recado do Sr. Miguel Francisco para o Dr. Arcelino.
– Que manda dizer o meu tio Miguel?
– Vou repetir as palavras dele: “Rifane, vá a Pacatuba e diga ao meu sobrinho Dr. Arcelino, que se alguma coisa lhe mereço, venha ver-me com toda urgência.” E foi só.
– Meu tio Miguel de mim merece tudo. Decerto que irei visitá-lo sem demora. Está ele doente?
– Não, senhor! Goza boa saúde, apesar dos seus oitenta e oito anos contados.”

Arcelino e Rachel ficaram conjeturando acerca desse estranho chamado do velho tio rico do sertão e, no dia 31/12/1879 Arcelino chegou à Califórnia. No dia seguinte Miguel Francisco revelou o motivo de seu chamado: ele e sua esposa queriam fazer-lhe a doação da fazenda Califórnia e constituí-lo único herdeiro de todos os bens do casal, com uma condição: deveria vir morar na fazenda, fazendo-lhes companhia e tomando a direção de todos os seus negócios enquanto eles vivessem. Explicou que já se sentia velho e cansado, incapaz de gerenciar suas fazendas. Não tinham filhos e também não queriam ver suas propriedades fragmentadas e repartidas entre os inúmeros herdeiros. Assim haviam escolhido o sobrinho que mais parecia merecer, capaz de proporcionar ao casal de velhos um final de vida confortável e tranquila.
Arcelino se propôs a gerenciar os negócios e fazer-lhes companhia, independente de qualquer herança. Mas o tio obstinado mandou vir de Quixadá o Tabelião José Enéas Monteiro Lessa que passou as escrituras conforme suas determinações.


Arcelino e Rachel trouxeram para a Califórnia três filhos pequenos: Adelaide (minha bisavó materna, mãe de Arcelino Queiroz de Mattos Brito), João Baptista e Pedro, com apenas um ano de idade (falecido criança, em 1888, de febre amarela, em Fortaleza). No dia 31/10/1880, nasceu na Califórnia um menino, filho do Dr. Arcelino de Queiroz Lima e de D. Rachel de Queiroz Lima, o qual se chamou Esperidião e foi batizado na Capela de São Francisco de Assis, tendo como padrinhos Miguel Francisco e D. Maria da Penha, sendo levado à Pia Batismal por sua irmã Adelaide, com apenas sete anos de idade.
Em 1882, Arcelino acabava de chegar de uma viagem à Fortaleza quando lhe informaram que Miguel Francisco não estava bem e queria vê-lo imediatamente.
Ao entrar no quarto viu que o tio passava mal, estava lívido e ofegante, sentindo uma dor forte no peito, apenas murmurou:

“– Tenho uma coisa importante a revelar-te...”

Dirigiu um olhar entre os que estavam ali presentes, fazendo com a mão um gesto para que se retirassem. Nisso levou as mãos ao peito e tombou desfalecido. Talvez um edema agudo pulmonar tenha cortado a existência de seus noventa anos já completos.
Qual seria a revelação que Miguel Francisco não pôde fazer? Todos acreditaram que fosse o segredo do local onde a mala de ouro estaria enterrada.
Enquanto era velado o corpo de seu velho tio, Arcelino passou toda a noite desse dia sentado à mesa, escrevendo: lavrou e assinou como procurador do tio, oitenta e duas cartas de alforria, libertando todos os escravos que lhe caberiam de herança, livrando-se assim do imposto de transmissão da propriedade servil que não desejava conservar. Tornou-se então, secretamente, um grande libertador de escravos. Depois disso promoveu o casamento religioso e a legitimação de todos os filhos dos ex-escravos.
D. Maria da Penha viveu mais um ano, tratada pelos sobrinhos e herdeiros com a mesma dedicação e o carinho que sempre tiveram para com a tia, e o maior escrúpulo de inquirí-la sobre o paradeiro da mala. Mas outros sobrinhos vindo visitá-la, não deixavam de interrogá-la a respeito, ao que ela lhes respondia:

“– Deus não quis que ele falasse e eu respeito a vontade daquele homem e a de Deus...”

Miguel Francisco e D. Maria da Penha foram sepultados na entrada da capela que ergueram na povoação da Califórnia.

A família da Califórnia cresceu muito. Alem de Adelaide, nascida em 05/03/1873, João Baptista, nascido em 20/07/1875 e Pedro (falecido criança), nasceram depois na casa velha da fazenda Califórnia os outros filhos do casalEsperidião*, em 31/10/1880Mário, em 29/05/1882, Eusébio, em 19/05/1884, Daniel, em 03/02/1886, Pedro, em 08/02/1889, Beatriz, em 04/06/1892, José Arcelino, em 12/09/1893 e Arcelina, em 1º/05/1895.

O Dr. Arcelino reconstruiu a Igreja, que é o mais antigo templo da paróquia de Quixadá, e a casa onde viveram seus velhos tios, removendo todo o ladrilho e descobrindo os alicerces, na esperança talvez de encontrar o tal tesouro, mas até hoje continua o mistério da mala de ouro escondida...

A CALIFÓRNIA – o sítio, o pomar e o jardim
Nas terras férteis da Califórnia, a água farta tornou-se a fonte determinante de toda a prosperidade e beleza dessa imensa e rica fazenda fundada pelo Sargento-Mor Miguel Francisco, melhorada pelo Dr. Arcelino que se dedicou a ela com o espírito de renovação que caracterizava aquela época.Depois de abandonar a toga, ele fixou-se com a família na fazenda, onde construiu a casa-grande em forma de “H”, com 85 portas, mais distante do “arruado” de casas, onde ficava a casa velha da fazenda construída pelo tio, e mais próxima do açude. Aí nasceram quase todos os seus filhos.
Aproveitando a mão de obra operária abundante e necessitada de socorro, decorrente da terrível seca de 1888 que assolou o nordeste, o Dr. Arcelino aumentou o açude, mudou o sangradouro e trocou o antigo sifão por um cano de ferro de seis polegadas de diâmetro colocado por baixo da parede principal. Assim o açude se tornou um imenso reservatório d’água, centro vital da fazenda, e podia irrigar o magnífico sítio que ficava logo abaixo da barragem, composto de um belo pomar, enorme coqueiral e imensos canaviais.
Da extensa massa líquida, límpida e profunda que formava o “prato do açude”, partiam braços d’água que se insinuavam entre os morros, ao longo dos riachos afluentes, tomando o lago, no seu contorno, a forma de uma gigantesca mão espalmada com os dedos abertos. O jato forte de água que jorrava através do tubo posto sob a parede da barragem, caia abundante dentro de um enorme tanque de cimento, de onde partia um canal de irrigação que alimentava uma rede de levadas distribuindo essa água por toda a extensão da várzea. O tanque de registro, onde se graduava o volume de água solta, ficava abrigado dentro de uma casinha pitoresca, de forma que assim era possível manter o nível da água desejado. Tinha-se portanto, à vontade, ou o banho de ducha ou de imersão na água borbulhante, agitada em turbilhão pelo jato de alta pressão. Um banho nesse banheiro da Califórnia, especialmente no verão escaldante do sertão, era realmente um prazer inesquecível.
O peixe em abundância fornecia boa alimentação aos moradores da fazenda e também à vizinhança, durante todo o ano.

Arcelino e Rachel
“Embora descendessem ambos de famílias sertanejas da Ribeira do Sitiá, nascera e criara-se Arcelino no sítio Bom-Jardim, nos tabuleiros de Cascavel, e Rachel era legítima serrana. Desse modo, volvendo definitivamente para o sertão, ele levou os coqueiros e as fruteiras das terras do alagadiço, e ela transportou as flores da serra, surgindo, na Califórnia, um magnífico pomar e um lindo jardim.”
Esperidião de Queiroz Lima  –  Reminiscências


Logo abaixo da parede do açude ficava o jardim, com uma bela coleção de roseiras, lindas flores e o pomar, com uma grande variedade de fruteiras tropicais, desde o açaí do Pará até a tamareira asiática. Havia ainda inúmeros pés de serigüelas, cajás, umbus, atas, graviolas, mangas, pitombas, azeitonas e de muitas outras frutas típicas do nosso nordeste.
Ao longo das margens das levadas se enfileiravam os coqueiros e, alem do pomar, a perder de vista se estendiam os canaviais.
Fora desse terreno irrigado, uma enorme plantação de cajueiros formava um verde bosque que no mês de outubro, com “as chuvas dos cajus”, se cobriam de belos frutos vermelhos e amarelos, perseguidos pelas inúmeras espécies de aves que em bandos ali se achegavam.
No verão, quando baixavam as águas do açude, iam-se descobrindo as terras marginais, úmidas e adubadas pelo lodo sedimentado, formando as ricas “vazantes”, onde se plantavam frutas e legumes de curto ciclo produzindo a fartura, extensiva a todos os moradores. Eram melões, melancias, jerimuns, milho e feijão verde em quantidade.
No inverno de chuvas regulares, a produção dos roçados era assombrosa. Junto com o milho era plantado o feijão de corda, colhido em vagens maduras pelas mulheres. Virado o milho maduro e colhidas depois as espigas secas, ficava no roçado uma enorme reserva de forragem constituída de palha de milho e rama de feijão. Esses cercados eram mantidos de porteiras fechadas e guardados para nos últimos meses de seca servirem de pasto aos animais.
Com a fartura do inverno apareciam ainda as frutinhas silvestres, para a alegria dos meninos sertanejos que se aventuravam nas várzeas em busca das melancias-da-praia, mangabas, juás e maris, que agradavam mais pela novidade que mesmo pelo paladar.

A CALIFÓRNIA – a fazenda
Nas várzeas do rio cobertas de juazeiros, e nas vastas caatingas atapetadas de "capim mimoso", pastava uma grande quantidade de gado dividida entre as fazendolas situadas no entorno da sede principal. Segundo contavam os nossos parentes mais velhos, eram dezoito fazendas ao todo.
O engenho de cana com grande produção de rapadura, açúcar e aguardente, e as fábricas de algodão e de farinha, deixavam resíduos alimentares bem aproveitados, especialmente o caroço do algodão, rico em proteína e gorduras, era distribuído como ração complementar entre os ruminantes.
Entre os produtos subsidiários da fazenda estava o sabão Califórnia”, fabricado à base de sebo animal, para uso próprio e com boa aceitação no mercado interno.
A extensa criação de animais garantia à fazenda o fornecimento da grande quantidade de carne consumida pela família e agregados mantidos à custa da casa.
A cada semana era abatida uma rês gorda, que fornecia os “lombos” assados, a “panelada”, as linguiças e a carne de sol. Além disso, ainda matava-se três vezes por semana, uma “marrã” de ovelha ou um cabrito gordo, para o preparo dos pernis, das costelas assadas na grelha, dos guisados e do sarapatel.
Sem contar com a criação miúda de terreiro – galinhas, patos, perus, gansos e capotes – de consumo quase diário.

Carnes gordas, saborosas e diversas, linguiça, chouriço (doce) e toucinho. Aves e ovos, peixe, leite, coalhada, queijo e manteiga. Cuscuz, mucunzá, pamonha e canjica (de milho verde). Beiju, tapioca, coco e castanha de caju. Batata doce, macaxeira, jerimum, maxixe e quiabo. Ata, graviola, manga, figo, melão, melancia, banana, mamão e caju. A despensa cheia de farinha, feijão, arroz, milho, açúcar e rapadura, tudo isso produzido na própria fazenda, sem passar por matadouros, feiras ou mercados. Sem se falar em preço ou conta de armazém – tal era a farta alimentação, simples, sadia e variada, usual nas prósperas fazendas sertanejas, especialmente quando servidas de grande açude e boas terras molhadas de cultura...

Era assim a Califórnia...




Dr. ARCELINO da Califórnia

Dr. Arcelino de Queiroz Lima foi o primeiro bacharel da Família QUEIROZ-BARREIRA. Interrompeu sua carreira de Juiz quando se tornou herdeiro único de seu tio rico, o velho Miguel Francisco de Queiroz Lima. Faleceu aos 58 anos na Califórnia, em 19/11/1895, deixando viúva D. Rachel, aos 43 anos, com seus dez filhos, sendo oito menores, inclusive a caçula, Arcelina, com apenas seis meses de idade.
D. Rachel "assumiu a administração de seus bens, fez seguirem para o Rio de Janeiro o filho maior João Baptista, que recomeçando os estudos matriculou-se na Faculdade de Medicina, e Esperidião*, que foi fazer os preparatórios, para o Colégio Abílio. Os outros filhos continuaram os estudos em Colégios locais, sendo mandados para o Rio à medida que iniciavam o curso secundário.
Essa resolução foi criticada por parentes e amigos  "que lhe aconselharam a criar os filhos, trabalhando na fazenda, dando-lhes, para começarem a vida, o dinheiro que teriam de gastar nos estudos.” Ao que dona Rachel respondeu dizendo que: "as fazendas divididas em dez partes e sujeitas às vicissitude das secas, não garantiriam a prosperidade futura dos filhos, que corriam assim o risco de ficar pobres e ignorantes, como frequentemente acontecia.”
Esperidião de Queiroz Lima – Antiga Família do Sertão 

D. Joanna Baptista de Queiroz Lima, casada com seu primo
João Batista Alves de Lima, eram os 
pais da Vózinha Rachel, 
  e foram eles, donos e fundadores do Sítio  Guaramiranga,
na Serra de Baturité.


Dona RACHEL da Califórnia

Vózinha RACHEL da Califórnia, em 1922 
Seus dez filhos:

- Adelaide, casou-se com seu primo Francisco de Mattos Brito, o coronel Chichio, foram donos do Sítio Guaramiranga, tiveram dezesseis filhos, mas três deles faleceram ainda criança, criaram-se treze, sendo nove mulheres e quatro homens: Cléa, Arcelino (meu avô materno), Elsa (Ir. Germana e depois Ir. Maria Luiza), Antônio (Brito), Maria Adelaide (Ir. Brito), Jorge, Alice, Áurea, Nestor, Nilda, Lúcia, Cira e Zélia;
- João Batista, médico (o Dr. Batista de Quixadá), casou-se também com uma prima, Clotilde Marinho de Góes foram pais de um único filho, Narcélio (anagrama de Arcelino), que se casou com a escritora Dinah Silveira de Queiroz;
- Mário, casou-se duas vezes, com Julieta e depois com Demitilde, teve um único filho, Renato;
- Esperidião, médico, cientista e escritor, casou-se com Maria de Jesus Marinho de Góes, Mariinha, irmã de Clotilde (ambas eram filhas de Galdioso Simão de Castro Góes e Joanna Lydia Barreira, meus bisavós paternos), tiveram cinco filhos: Rodrigo, Sílvia, Lydia, Myrta e Doris;
- Eusébio, jurista, professor e também autor de vários livros, casou-se com Emília Lacaz, não tiveram filhos;
- Daniel, jurista, casou-se com Clotilde Franklin de Lima, tiveram quatro filhos: Rachel de Queiroz, Roberto, Luciano e Maria Luiza;
- Pedro, casou-se com Maria de Lourdes Paracampos, tiveram duas filhas: Rachel e Isolina;
- Beatriz, casou-se com Homero Varela, que já tinha uma filha, Zilda, e tiveram cinco filhos: Ângelo, João, Claudio, Marcelo e Sílvio;
- José Arcelino, que ficou com a fazenda Califórnia, casou-se também com uma parenta, Abigail (filha dos primos de Cascavel), tiveram dois filhos: Rachel e João Thomás;
- Arcelina, nascida poucos meses antes da morte de seu pai, casou-se no Pará com o português Adriano Santos e tiveram cinco filhos: Armando, Pedro, Maria da Graça, Adriano e Gastão.

ADELAIDE, minha bisavó materna, e eu.
Nessa foto, da esquerda para direita, estão em pé:
Esperidião (filho do Dr. Arcelino), Lydia (filha do Esperidião),
Baptista (filho do Dr. Arcelino)Narcélio (filho de Baptista)
e Rodrigo (filho do Esperidião).
Sentadas: Clotilde (esposa do Baptista), Mariinha (esposa do Esperidião) e Sylvia, com a Myrta (de pé) entre Mariinha e Sylvia; sentada na cadeirinha, a Dóris (Sylvia, Myrta e Doris, filhas do Esperidião).



Estação de trem DANIEL de QUEIROZ


A casa velha do JUNCO,
construída por Miguel Francisco de Queiroz Lima,
tem mais de duzentos anos, toda feita de taipa,
com o madeirame de aroeira
e o envaramento amarrado com tiras de couro cru.
As colunas do alpendre são de troncos de Aroeira.

Nesse sítio, Bom Jardim, nasceu o Dr. Arcelino de Queiroz Lima


Sítio LUCAS, em Beberibe (antigamente era  município de Cascavel)

Família QUEIROZ, 1920 - Fazenda Califórnia
À direita dessa foto, sentado, está o Dr. Daniel Queiroz (pai da escritora Rachel de Queiroz), filho do Dr. Arcelino;
atrás dele, está Arcelino Queiroz de Mattos Brito (meu avô materno),
neto do Dr. Arcelino;
ao lado dele, está Rachel de Queiroz (menina), junto à vozinha Rachel;
ao centro, bem à frente, está D. Clotilde, mãe da escritora Rachel de Queiroz.
Meu avô ARCELINO e sua prima RACHEL
herdaram os nomes dos avós.

*   *   *   *   *   *   *
*Esperidião de Queiroz Lima, nascido na fazenda Califórnia em 31/10/1880, era o quarto filho do Dr. Arcelino e dona Rachel de Queiroz Lima. Formou-se em Medicina aos 23 anos de idade, pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Casou-se com Maria de Jesus Marinho de Goes (que adotou o nome de Maria de Goes Queiroz Lima), Tia Mariinha, irmã de meu avô paterno, José Marinho Falcão de Goes.

Tio Esperidião e Tia Mariinha
Médico, cientista, poeta e historiador, clinicou por longo tempo em Manaus e no Território do Acre, realizando estudos científicos que lhe valeram a nomeação como Médico do Serviço de Indústria Pastoril, do Ministério da Agricultura, no Pará, de onde foi transferido seguidamente para: Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, São Paulo, Mato Grosso e Santa Catarina. Continuando suas pesquisas, comprovou através de trabalhos realizados na Estação Experimental do Instituto de Biologia Animal de Deodoro (Rio de Janeiro), em 1934, que os morcegos hematófagos são responsáveis pela transmissão da RAIVA em animais.
Depois de se aposentar como médico, no Rio de Janeiro, escreveu a história de seus antepassados, "ANTIGA FAMÍLIA DO SERTÃO" (de 1880 a 1895), publicado em 1946. Escreveu ainda "REMINISCENCIAS", onde relata fatos de sua infância e mocidade, decorridos entre o sertão e a Serra, a escola no Ceará e depois no Rio de Janeiro (de 1895 a 1903), inédito.
O texto original de "REMINISCENCIAS", de Esperidião de Queiroz Lima, era constituído de três parte:
I – de Quando Menino no Ceará, 1880-1895;
II – do Tempo de Estudante, no Rio de Janeiro, 1896-1903;
III – Onze Anos na Amazônia, 1904-1915 (que foi editado separadamente pelo INPA/CNPQ).

Títulos de alguns dos seus trabalhos:

Um Problema Pecuário do Nordeste: A Alimentação dos Gados Durante a Seca (1930)
A Transmissão da Raiva Bovina pelo Morcego Desmodus Rotundos (1933);
A Transmissão da Raiva dos Herbívoros Pelos Morcegos Hematófagos da Família Desmondotidae (1934)
Novos Rumos na Epizootiologia e na Profilaxia da Raiva dos Herbívoros (1935, obra traduzida para o espanhol e publicada no Uruguai)

Deixou inéditos alguns trabalhos de grande importância e repercussão mundial.
Faleceu no Rio de Janeiro aos 86 anos, no dia 1° de janeiro de 1967.




Tio Esperidião no Palácio do Catete,
recebendo do grande presidente Juscelino Kubitschek
Título de Inscrição no Livro do Mérito Cientifico.

*     *     *     *     *     *     *


Esperidião viveu sua infância na fazenda Califórnia, e só em 1889, com nove anos de idade, veio conhecer o sítio Guaramiranga de seus avós: “na serra, a mil metros de altitude, tudo era novo para um menino nascido e criado no sertão.” Muito criança ainda, depois de enfrentar uma longa viagem a cavalo ficou deslumbrado com o “formidável contraste entre a serra, sempre verde e fresca, bela e rica, e o sertão, que se estendia a seus pés, torturado então pela seca prolongada e aniquiladora”. Viagem que ele descreveu muitos anos depois em suas “Reminiscências”.



– *“Ainda em Janeiro de 1900, depois de uma curta visita à Califórnia, fui passar uns dias no Guaramiranga, no alto da Serra de Baturité, onde fazia um clima adorável, prendendo em seus sítios serranos as famílias sertanejas, à espera que principiasse, no sertão, o inverno que já tardava.

No velho sítio de meu avô, então pertencente a meu cunhado Francisco de Mattos Brito – O Chichio – que iniciava a restauração dos exaustos cafezais pela arborização com ingazeiras, reavivei as saudades de meus anos infantis, vividos entre jardins e pomares, no encantamento de um paraíso.

A ternura de Adelaide, minha querida irmã e madrinha, completavam o delicioso agrado do ameno ambiente.

Extasiado com os esplendores da Serra e a sedutora beleza das serranas escrevi o soneto “Guaramiranga”, incluído noutro livro (“Antiga Família do Sertão”, cap. XXXIX).

“Conservo gratas lembranças desses dias de ventura.”
– “Enfim, era o Guaramiranga, o sítio encantado dos meus queridos avós, que sabia achar-se muito longe e muito alto, uma espécie de paraíso terrestre, afinal encontrado! E talvez fosse essa a principal causa do meu deslumbramento. Era, enfim, o Guaramiranga de meus sonhos!”  – “REMINISCÊNCIAS” – livro inédito de Esperidião de Queiroz Lima


GUARAMIRANGA  – Esperidião de Queiroz Lima

Embalada nas matas colossais,
Repousa a irmã querida da alvorada,
Guaramiranga, a virgem coroada
Com flores de cafés e laranjais.

Ninho de amor à sombra dos rosais,
Onde vive a serrana a ser amada,
Mais feliz, mais ditosa que uma fada
Viveria em palácios ideais.

Linda flor, perfumosa violeta,
Que a nuvem, como enorme borboleta,
Beija, sugando o néctar que ela encerra.

Uma ponta de luz do Paraíso,
Que tombando, brilhante, num sorriso,
Se engastou, para sempre, aqui na terra.



*     *     *     *     *     *     *


                                                            *     *     *     *     *     *     *



FONTE de PESQUISAS:


– LIMA, Esperidião de Queiroz – Antiga Família do Sertão – 1946
– LIMA, Esperidião de Queiroz – Reminiscências (inédito) – 2003
– SOUSA, José Bonifácio de – Quixadá & Serra do Estêvão – 1997
– RAUPP, Tereza Cristina Bessa – Lembranças da vovó: vida de tanto tempo – 2006
– QUEIROZ, Rachel de – Tantos Anos – Rachel de Queiroz e Maria Luiza de Queiroz – 1998
– QUEIROZ, Rachel de – O Não Me Deixes – 2000
– Anotações, registros pessoais, publicações na Internet, fotos dos arquivos de família.