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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Bodas de Sangue (documentário)

Nas primeiras décadas do século IXX, morava entre os sertões de Tamboril e Quixeramobim, uma numerosa família de homens fortes e validos, ágeis, inteligentes e bravos. Viviam de vaqueirice e de pequenas criações, e pela fatalidade do destino vieram a fazer parte dos anais do crime no interior do Ceará, numa verdadeira guerra de família que perdurou por muitos anos. Seus maiores adversários foram os Araújos, família rica e ligada a outras das mais antigas do norte do estado que habitavam a mesma região, sobretudo na povoação de Boa Viagem, distante dez léguas de Quixeramobim.
No dia 11 de fevereiro de 1834, domingo de carnaval, pela manhã, achava-se o capitão Luciano Domingos de Araújo, jovem e rico fazendeiro de Boa Viagem, na casa de um parente seu, o português Jacintho de Souza Pimentel, na próspera vila de Quixeramobim.
Naquele esplêndido começo de inverno sentiam-se todos felizes e contentes, mas ninguém estava tão feliz quanto Luciano, que recebia dos amigos efusivas felicitações pelo seu casamento, a realizar-se no dia seguinte, com a inteligente e formosa Dona Joanna Baptista de Queiroz Barreira.
A noiva era filha do abastado criador Tenente Ignácio Lopes da Silva Barreira e de sua esposa Dona Joanna Baptista de Queiroz, proprietários da grande e antiga fazenda do Tapuiará, nas proximidades de Quixadá, onde teriam lugar as cerimônias e festas do venturoso enlace.
Em meio a tanta satisfação, entretanto, sentiu Luciano uma forte contrariedade, ao avistar, da janela do sobrado em que se hospedara, passando pela calçada fronteira, o seu inimigo Miguel Carlos Maciel, muito bem vestido e cercado de amigos e guarda-costas.
Aproximando-se a hora da missa, dirigiu-se Luciano, acompanhado de amigos para a igreja, sendo então avistado por Miguel Carlos, que se achava parado ao pé do santo cruzeiro com seu grupo, ao qual observou:

 - É pena que aquele sujeito, tão feio e ordinário, vá casar com uma moça tão bonita e prendada, e que ainda é minha parenta! Eu dava quarenta mil réis a quem impedisse esse casamento!

E no olhar sombrio que dirigiu a seus comparsas havia uma sinistra interrogação.
Existia entre os dois rancorosos rivais, alem da feroz luta entre as famílias, um outro motivo mais forte além do ódio que se votavam.
É que, por ocasião das festas natalinas, aconteceu no patamar da igreja matriz de Quixeramobim, um concorrido e rendoso leilão em benefício da igreja. Especialmente nesse leilão as prendas eram anunciadas com a declaração dos nomes de seus doadores, com a intenção de incentivar a disputa entre os licitantes, que subiam os lances em razão da homenagem que desejavam prestar ao dono do objeto oferecido.
Quando mais animada ia a festa e mais acesa a luta entre os gentis e generosos arrematantes, apregoou em alta voz, o leiloeiro:

- Um pequeno e fino lenço, primorosamente bordado em ponto de crivo, com a dedicatória:

“Para ser oferecido à gentil dona Joanninha Barreira do Tapuiará”.

- Quanto me oferecem pelo lindo presente?
- Cinco mil réis!
Luciano vendo que a oferta partia de Miguel Carlos que estava colocado do lado oposto da mesa do leilão dobrou a parada:
- Dez mil réis!
- Onze mil réis!
- Vinte mil réis!
Vendo que a competição se tratava entre os dois inimigos, ninguém mais interveio.
- Vinte e um mil réis!
- Quarenta mil réis!
Houve silêncio. Miguel Carlos voltou as costas.
- Quarenta mil réis... dou-lhe uma! Quarenta mil réis... dou-lhe duas! Quarenta mil réis... dou-lhe três!
 E o leiloeiro entregou a prenda a Luciano, a qual deveria ser entregue à moça que ele ainda não conhecia.
Dona Joanna Barreira, para fugir à curiosidade despertada pela acintosa disputa que presenciara, recolhera-se à casa que o Coronel Jucá, seu irmão, mantinha na vila, ali mesmo na praça da matriz, para os dias de festas religiosas e as freqüentes reuniões políticas.
Foi aí procurada pelo licitante vitorioso, que lhe entregou o lindo lenço, dizendo com certa jactância:

- Minha senhora, não tive culpa de que tão preciosa dádiva não tenha obtido o seu devido valor.
- Senhor, tenho o dever de aceitar a prenda oferecida em minha atenção, mas lamento muito que fosse o meu nome envolvido numa contenda que não me dizia respeito.
- Oh, minha senhora, sinto muito lhe ter causado esse desgosto; reconheço agora que agi impensadamente; faria tudo para merecer o seu perdão.
- Nada tenho que lhe perdoar, pois que o senhor não me ofendeu. Apenas rogo a Deus que abrande o coração dos homens, que só encontram na vida motivos de luta e de ódio e desconhecem as doçuras da paz e do amor ao próximo.
- Pelo que me toca, parece que Deus já fez o milagre, pois começo a perceber as doçuras da vida e a força da bondade humana.

Foi visível a impressão causada em ambos por esse breve diálogo, que lhes tocou mutuamente os corações. Quando eles se avistaram logo depois durante a missa do galo, já havia em seus olhares recíproco entendimento.
No dia seguinte o velho e bondoso Tenente Ignácio Barreira recebeu uma carta de Luciano pedindo-lhe a mão de sua filha.
Assim, antes mesmo de decorrer dois meses após o Natal, quando Joanna e Luciano se conheceram, estava Luciano naquela manhã do domingo de carnaval na Vila de Quixeramobim. Ele ia dirigindo-se à igreja pra assistir à missa, quando Miguel Carlos, ao avistá-lo, prometera em voz alta quarenta mil réis a quem impedisse o casamento de sua prima com aquele inimigo seu.
Um dos guarda-costas de Miguel Carlos, Estácio José da Gama, cabra novo, de 27 anos de idade, entroncado e forte, entendeu as palavras e o olhar do patrão como uma ordem a cumprir.
Na tarde desse mesmo dia, devidamente preparado, ele tomou o caminho por onde o noivo com o seu cortejo deveriam seguir no dia imediato em demanda da fazenda Tapuiará, em Quixadá. Como bom profissional, foi escolher antecipadamente um local próprio e seguro para a execução do plano arquitetado.
Na fazenda Cachoeira, localizada três léguas abaixo de Quixeramobim, nos limites da estrada de ferro da hoje estação de trem de Uruquê, encontrou um ponto nas condições desejadas. Beirando a estrada por onde o noivo fatalmente teria que passar havia um longo cercado; colocando-se dentro dele, ficaria protegido contra os cavaleiros do acompanhamento, visto que estes, não podendo transpor a forte cerca de pau-a-pique, teriam que rodeá-la, dando-lhe tempo de chegar ao fundo do cercado e tomar o cavalo que deixaria do lado de trás, sem risco de ser alcançado.
Para evitar que o noivo, passando rapidamente no meio do grupo de companheiros, não pudesse ser distinguido e visado com precisão, ele preparou então uma emboscada: derribou uns galhos de uma jurema ramalhuda, que caíram atravessados na estrada, deixando apenas uma estreita nesga de caminho livre junto à cerca, por onde os cavaleiros teriam que passar forçosamente, um a um.
Dentro do cercado, defronte dessa passagem cuidadosamente preparada, havia, mesmo a jeito, uma moita de mofumbo.
Entre a moita e a cerca existia uma pequena ipueira, já então cheia d’água, que abria no mato uma clareira propícia à boa visibilidade dos transeuntes na estrada e à segurança da pontaria.
A ipueira, como um fosso de lama, serviria ainda para aumentar o embaraço da perseguição.
Estava tudo em ordem. De madrugada viria pôr-se de tocaia.
E assim, na manhã seguinte, dia 12 de fevereiro, segunda feira gorda, partiu o venturoso noivo, que embalava no espírito todas as esperanças de felicidade permitidas a um rapaz de vinte e sete anos, rico, forte e mesmo bonito, malgrado a opinião de seu despeitado rival. Ia acompanhado de numerosos amigos, formando uma brilhante cavalgada, pois que todos montavam belos animais, árdegos e marchadores, que reluziam com seus arreios alcochoados de camurça e marroquim, com estribos, fivelas e passadores de prata, o maior luxo dos sertanejos ricos de então.
Nas proximidades da fazenda Cachoeira, pela antiga estrada que ligava a Vila de Quixeramobim a Quixadá, Luciano marchava emparelhado com um cunhado de sua noiva, o português Joaquim Antonio da Cunha, que viera até Quixeramobim ao seu encontro. Ao chegar ao ponto em que a estrada fora interrompida pelos galhos derribados, Joaquim Antonio tomou a dianteira e transpôs a estreita passagem ao longo da cerca, sendo seguido por Luciano.
Nesse momento troou perto o estampido de um tiro. Todos olhando na direção do som viram um homem sair da tocaia e correr para os fundos do cercado, empunhando um bacamarte na mão esquerda e um espadagão na direita. Vestia calça de riscado azul, gibão e guarda-peito de couro. Levava ainda chapéu de couro e um lenço de Alcobaça atado ao pescoço. Protegido pela cerca da perseguição dos cavaleiros, como planejara, o criminoso conseguiu fugir sem embaraço.
Luciano tendo recebido a bala no ventre, inclinou-se para frente, desfalecido, sendo amparado pelos companheiros, que o deitaram na beira da estrada, procurando reanimá-lo, enquanto se mandava buscar uma rede na casa da fazenda Cachoeira.
Enquanto isso, no Tapuiará, nessa bela manhã de inverno, tudo era festa e alegria.
Quase todos os parentes da casa, das famílias Queiroz, Lopes Barreira e Alves Lima, que ali se haviam entrelaçado em múltiplos casamentos, achavam-se presentes ou condignamente representados.
Como todos aproveitavam a feliz ocasião para envergar seus trajes de gala, havia na casa uma despretensiosa exibição de seda e veludos, de rendas e bordados e de jóias e requififes, numa inocente ostentação de luxo.
Já estava preparado o lauto banquete, com saborosas e variadas iguarias e bolos e doces em profusão.
Tudo estava preparado para a cerimônia nupcial, que seria realizada depois da missa.
Dona Joanna Baptista estava encantadora no seu vestido de noiva.
Mas já ia se tornando tarde e o noivo não chegava. Do terreiro da casa olhares impacientes alongavam-se pela estrada de Quixeramobim, na ânsia de avistar primeiro a ilustre comitiva, para dar o sinal de queimarem-se os foguetes e as ronqueiras, que estavam preparadas para a festiva e ruidosa recepção.
Mas que era aquilo que aparecia lentamente, ao longe, no caminho? Era uma rede, o meio habitual no sertão de carregarem defuntos e moribundos.
A dúvida, o temor, a certeza de uma desgraça empolgaram sucessivamente todos os presentes,
Sim, era uma rede. Vinha na frente, carregada ao ombro de dois homens. Via-se agora muito bem, estava vermelha de sangue, trazia portanto um ferido: vivo ou morto? A ansiedade tornava-se angustiosa.
Muitos saíram ao encontro do ferido, que não se sabia quem era. Mas Luciano não era visto entre os que, silenciosamente e acabrunhados acompanhavam a rede. Com certeza seria ele! Não podia haver mais nenhuma dúvida. O desespero era geral: havia lamentos, prantos, súplicas e imprecações.
Dona Joanna Baptista, vestida de noiva, pálida e trêmula, apoiou-se num esteio do alpendre para não cair. Uma dor surda despedaçava-lhe o coração.
Acercando-se da rede que chegava, vendo o noivo pálido, exangue, exclamou:

- Luciano! Que desgraça a nossa! Quem te fez isso?
- Um tiro... numa emboscada. Joanninha... ouve o que vou dizer-te... pedi que me trouxessem... quis ver-te... e perguntar... se queres casar comigo... neste estado... agora mesmo?
- De certo! Se é esta a tua vontade.
- Então chama o padre depressa!

Transferiu-se então o ferido para um leito improvisado num catre que havia no salão, em meio do choro das senhoras e cochichos dos homens, que comentavam discretamente a extravagância de um casamento naquelas circunstâncias. No entanto ninguém se opôs à decisão peremptória do noivo de casar-se imediatamente e à firme resolução da noiva de fazer-lhe a vontade.
Luciano pediu que lhe calçassem as costas com almofadas, para ficar meio sentado durante a cerimônia, que foi tocante, naquele ambiente de pena e de dor. Foram emocionantes os votos nupciais trocados perante a morte. Luciano parecia combater heroicamente, no passo extremo, em defesa de seus pundonores.
Era comovente o mudo sofrimento de Joanna Baptista: seus belos olhos claros eram fontes de lágrimas, que rolavam aos pares pelo rosto formoso, e o seio arfava-lhe em profundos suspiros, verdadeiros soluços silenciosos.
Olhos que se fitavam embaciados de lágrimas, mãos que se apertavam sentindo o gelo do túmulo. Juras murmuradas em voz débil que se ia extinguindo, e enfim, beijos ardentes em lábios frios que a morte paralisara – tão breve e doloroso himeneu de um noivo agonizante e uma noiva pura que passou à viúva sem ter sido esposa. Trocou assim imediatamente seu branco véu de noiva pelo manto negro da viuvez.
Tocante foi também a cena que arrancou lágrimas de todos os presentes, quando a noiva-viúva, num sacrifício extremo, mandou que lhe cortassem as duas longas tranças de seus cabelos castanhos, que segundo os costumes da época, deveriam acompanhar o marido no esquife mortuário.
Luciano já havia falecido, pouco depois do meio dia, quando chegaram os amigos que do lugar da emboscada tinham voltado a Quixeramobim, para avisar às autoridades policiais e buscar recursos médicos, que não passavam, aliás, de tintura de arnica e água fenicada.
Não havia naquela ocasião, na vila de Quixeramobim, um cirurgião aprovado, como foi declarado no auto do corpo de delito, procedido perante o Juiz de Paz Manoel Martins de Almeida Burity, e o escrivão Manoel Alexandre de Lima Junior, no qual por essa razão serviram como perito o Sargento-Mor João Bernardes da Cunha e como testemunhas Manoel Bezerra de Albuquerque e João Francisco Duarte que: declararam que tinha o corpo do morto um grande rombo de bala no vazio, junto à ponta do quadril, tendo o dito rombo de tamanho, em redondo, uma moeda de vintém e sair a dita bala na ponta do lombo da mesma parte, junto do rim; - que das ditas feridas morrera, passadas algumas horas, segundo a gravidade do lugar onde tinham sido feitas.

Estácio José da Gama, o matador de Luciano Domingos de Araújo, vendo que não fora perseguido, cuidou de afastar-se calmamente do local do crime, tendo, porem o cuidado de atravessar a estrada, teve o caiporismo de encontrar-se ao sair do mato, com seu primo Apolinário Lopes. Esse moço havia encontrado a comitiva um pouco mais abaixo no caminho, conduzindo a rede que transportava Luciano. Ali foi informado do crime e dos sinais do assassino, que coincidiram justamente com os de Estácio. Nessa mesma ocasião o assassino foi visto também por um vaqueiro, que passava na estrada conduzindo três bois.
Vendo-se assim denunciado, Estácio tratou de fugir para outra ribeira.
Por esse tempo, dera-se na vila de Quixeramobim um outro crime sensacional: um negociante rico que morava num sobrado, ouvindo à noite um barulho estranho e alguns ruídos provenientes do seu armazém, localizado no andar térreo, desceu para ver o que era.
Estava arrombando as prateleiras um soldado da guarda nacional, de nome João Cariri, que de supetão atravessou com o sabre o corpo do negociante quando este tentou lhe embargar a saída, e fugiu em seguida levando o sabre e a granadeira.
Os dois assassinos juntaram-se e foram ocultar-se na serra da Mombaça.
As autoridades de Quixeramobim, recebendo denúncias do paradeiro dos criminosos, oficiaram ao Capitão Manoel Honorato da Silva Limoeiro, subdelegado de polícia de Maria Pereira, comunicando as informações obtidas e ordenando a prisão dos facínoras.
Era o Capitão Honorato um diligente e pertinaz sertanejo, que vivia nas brenhas do alto Banabuiú, criando gado na fazenda Barra Nova e plantando cana e cereais no engenho Flores, uma légua distante. Tendo casado cedo, aos trinta e seis anos já tinha filhos rapazes, que o ajudavam na faina da lavoura. Alternando com essa vida pacata, exercia com sagacidade e destemor as arriscadas funções policiais, que lhe foram confiadas. Forte e ágil, calmo e intrépido, o subdelegado de Maria Pereira tornou-se famoso na perseguição dos criminosos, que tanto o temiam como o odiavam.
Recebendo a denúncia e a ordem de captura, o Capitão Honorato, conhecedor de todos os meandros dos caminhos e de todos os moradores do seu distrito, teve facilidade em apanhar um rapazinho desconhecido que descia das quebradas da serra.
Interrogando-o com habilidade e rigor, veio, a saber, que se tratava de um sobrinho de Estácio da Gama, que lhe viera trazer mantimentos no esconderijo, donde vinha voltando.
Pôde assim organizar com sua gente uma pequena patrulha, sendo acompanhado pelo rapaz, que foi obrigado, sob a ameaça de um cipó, a indicar o pouso dos criminosos.
Por uma fralda da serra da Mombaça, marchava cautelosamente a patrulha, pisando macio sem fazer ruído no empenho de apanhá-los de surpresa, quando o rapaz escorregou numa pedra e caiu, soltando ligeiro grito. O Capitão, percebendo que a queda, propositada, fora um sinal dado aos assassinos, que deviam estar muito perto, correu para frente, com os companheiros, num rápido assalto. Os dois criminosos, surpreendidos, tiveram que fugir com tanta urgência, que nem tempo tiveram de apanhar as armas; correndo e pulando por grotões abaixo, não puderam ser alcançados, apesar de renhida perseguição.
No rancho abandonado às pressas, ficaram dependuradas as armas e as mochilas de provisões e as redes armadas sob a pequena coberta de palha de pindoba. Junto ao fogo, em que ardiam, cobertos de cinza, tições de catingueira, que não se apagavam, estava espetado sobre as brasas, assando no próprio casco, um tatu verdadeiro, gordo e cheiroso, que não foi desprezado.
O Capitão Honorato, muito desapontado por ter perdido o bote, que julgava certo, recolheu o bacamarte de Estácio da Gama e a granadeira de João Cariri, guardando-os em sua casa, como troféus da malograda expedição.
Na semana seguinte os dois criminosos, já providos de novas armas, abordaram na estrada de Maria Pereira um viajante, por quem mandaram avisar ao subdelegado que se preparasse, que eles viriam buscar as armas tomadas.
Recebendo o atrevido recado, o Capitão Honorato pensou em precaver-se para receber a afrontosa visita anunciada. Acostumado, porem, a ligar pouca importância aos riscos de sua vida perigosa, e não querendo parecer que ficara com medo de ameaça dos dois bandoleiros, desprezou os conselhos da prudência. Determinou então que seus filhos, agregados e escravos seguissem para o sítio Flores, onde havia muito serviço urgente naquele princípio de inverno, quando o mato crescia rapidamente, ameaçando afogar as plantações ainda muito tenras. Na fazenda Barra Nova, que era só de criação, era pouco o serviço.
Naquela manhã chuvosa dos fins de fevereiro, estava o Capitão Honorato no curral, de calça arregaçada, pisando na lama, tirando o leite das vacas, auxiliado por um negrinho que ia soltando os bezerros. Desleitava a última vaca, quando ouviu um cumprimento que lhe era dirigido da porteira do curral:

- Sr. Capitão, bom dia!
Voltando a cabeça, viu debruçados sobre os varões da porteira os dois criminosos, bem armados.
- Bom dia. Que desejam?
- Queremos uma palavra, Sr. Capitão.
- Esperem um momento enquanto acabo o meu serviço que eu estarei às ordens.
Escorrupichou os peitos da vaca, puxou a ponta do arrelhador, soltando o bezerro, e disse aos visitantes:
- Façam o favor de arrodear para a frente da casa, que lá irei atendê-los.

E sem esperar resposta dirigiu-se para os fundos da casa, que davam para o curral, levando na palma da mão esquerda a cuia de leite e o arrelhador jogado sobre o ombro, na postura habitual; nisso ouviu atrás de si uma voz:

- Não atire no homem!

Percebeu assim que uma arma lhe fora apontada pelas costas; não se voltou; continuou a marchar como se nada ouvira; apenas esguiou a barriga, parecendo-lhe que ficara da grossura de um dedo.
Despejando o leite no pote sobre o jirau, entrou pela porta da cozinha e viu que sua esposa estava apavorada; e lhe pediu:

- Minha mulher! Pelo amor de Deus, não dê sinal de medo!

E por via das dúvidas, trancou-a na despensa, donde tirou um par de cordas de carnaúba, que entregou à escrava cozinheira, dizendo-lhe:

- Fique aqui, com estas cordas, sem fazer o menor barulho; quando eu chamar, leve as cordas, para amarrar os cabras.

E saiu para a sala da frente, completamente desarmado, e convidou os dois homens a entrarem. Estes se entreolharam desconfiados, mas, insistidos, entraram, ficando de pé no meio da sala, sustentando as armas na posição de sentido.
Honorato fechou a banda inferior da porta, que era partida horizontalmente ao meio, e calcou bem a tramela, que era muito apertada.

- Sentem-se, disse-lhes, indicando um banco.
- Muito obrigado; a conversa é pouca.
- Estou às ordens.
- Capitão Honorato, nós viemos buscar as nossas armas.
- Se eu entregar essas armas, ficarei desmoralizado em toda a comarca. Vamos, porém, entrar num acordo; darei uma bolsa de ouro a cada um...
- Nós queremos as armas.
- Naquele cercado tenho dois cavalos muito fortes e naquele quarto bons arreios...
- Nós só queremos as armas.

Honorato chamou o moleque e pediu água para lavar as mãos. E continuou querendo mostrar as vantagens de suas propostas aos obstinados antagonistas.
Volta à sala o negrinho com a bacia d’água; e vendo que seu senhor esticava os braços para diante sungando as mangas, pôs-se-lhe na frente, apresentando a bacia, e voltando as costas para os dois facínoras.

- Oh! Atrevido! Gritou-lhe Honorato, dás as costas a estes senhores?!

E ao mesmo tempo, com as costas da mão, deu-lhe violenta bofetada, o que fez rolar com a bacia para um canto da sala. Os dois cabras, como era natural, acompanharam com a vista o espetacular trambolhão do moleque.
Outra coisa não queria Honorato. Pulou como tigre sobre eles, atingindo violentamente com os pés o estômago de Estácio, que caiu desacordado, e arrancando com as mãos possantes e destras as armas de Cariri, que esmoreceu e ficou sem ação, sob a mira de seu próprio clavinote, manejado pelo agilíssimo Capitão.
Honorato chamou então a escrava, que seguindo suas ordens, atou com arrochados “nós-de-porco” os braços de Cariri, que foi amarrado ao esteio.
Só então é que Estácio foi recobrando os sentidos; e vendo a própria situação em que se achava, suplicou:

- Não me faça mal, que eu não deixei que Cariri lhe atirasse pelas costas!
- Eu ouvi a sua intervenção; fico-lhe muito agradecido; mas agora nada posso fazer; tenho que cumprir as ordens que recebi; é meu dever e Estácio foi amarrado, dizendo:
- Está direito, Sr. Capitão; bem dizendo o ditado: “quem seu inimigo poupa nas mãos lhe morre”.

Honorato porem, ficou vacilante. Muitas vezes teve ímpetos de soltar o preso, que lhe salvara a vida. Mas o sentimento do dever suplantou o da gratidão.
Os dois criminosos foram enviados para Quixeramobim, onde entraram em meio de grande regozijo popular, sendo entregues à justiça.
O extraordinário desse caso é que o bravo sertanejo nunca pensou em negociar com os cabras; puxou conversa tão somente para distraí-los; seu único propósito era amarrá-los e tinha plena confiança de o conseguir.
O admirável feito do subdelegado de Maria Pereira foi narrado pelo jornal oficial e mereceu do público aplauso unânime. O presidente da Província, empenhado em reprimir energicamente o crime, que até então campeava impune, pediu ao governo de Regência uma recompensa condigna para os relevantes serviços prestados à justiça pública pelo valoroso sertanejo, a quem foi concedida a insigne distinção da Comenda Ordem de Cristo.
Mas o modesto fazendeiro, avisado de que teria de pagar na Alfândega os emolumentos regimentais para receber o honroso título, desistiu da alta mercê, explicando aos amigos:

- Tinha muita graça: um matuto comendador! Seria um motivo de troça. Era só o que faltava!
E foi impossível convencê-lo do contrário.

O Capitão Honorato acabou seus dias na fazenda Barra Nova, atingindo a idade de 89 anos, já então cego, mas com plena lucidez de espírito.


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