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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Bodas de Sangue - O PRIMEIRO JURI DE QUIXERAMOBIM

A heróica vila de Campo Maior, que primeiro declarara decaída a dinastia imperial e proclamada a República, em 9 de janeiro de 1824, e em seguida, 4 de maio, repelira a constituição outorgada pelo Imperador, por ser emanada de poder incompetente, fremia de entusiasmo cívico. Naquela data ia inaugurar-se a libérrima instituição do júri, em que o cidadão seria julgado por seus pares, substituídas que foram as opressoras Ordenações do Reino Pelo Código de Processo Criminal, decretada pela Regência, após a festejada abdicação do despótico D. Pedro I.
O partido liberal, que se formara nessa aurora de emancipação política, estava empenhado em estabelecer as boas normas de aplicação da justiça na repressão ao crime, então desenfreado, triste herança dos tempos de opressão e terror.
Em virtude do decreto de 13 de dezembro de 1832, que mandava executar em todo o país o novo Código de Processo Criminal, fora modificada a divisão judiciária da província. Haviam sido criadas novas comarcas, inclusive a da vila de Campo Maior de Quixeramobim, compreendendo o seu termo: o de São João do Príncipe e o do Riacho do Sangue com o julgado de Maria Pereira (atual Joatama), o que fora resolvido pelo Conselho da Província, em sessão realizada em 6 de maio de 1833, dirigida pelo presidente José Mariano.
Justamente quando se reuniam na sede da comarca os primeiros jurados escolhidos em sorteio para as honras da inauguração do Tribunal popular, estavam na vila, no dia primeiro de março de 1834, os autores dos dois crimes importantes mais recentes. Assim, o matador de Luciano teve as preferências para a sessão dessa memorável estréia.
Foi rápido o processo. Interrogado perante a justiça, no sumário, Estácio da Gama confessou o crime, negando, no entanto que houvesse mandante; mas depois declarou que comunicara a execução do assassínio a Miguel Carlos, que então lhe prometera dar quarenta mil réis e um cavalo, o que depois repetiu perante o júri.
O juiz sumariamente lavrou a seguinte pronúncia:

“Vistos os depoimentos das testemunhas deste processo, interrogatórios de fls., informações a que procedi e constam destes autos, obrigam à prisão e livramento a Estácio da Gama, preso nas cadeias desta Vila. O escrivão lance o seu nome no livro dos culpados e intime esta sentença ao dito réu. Vila de Campo Maior, 4 de março de 1834. Manoel  Martins de Almeida Burity”.

A intimação foi feita no mesmo dia, conforme certificou nos autos o escrivão do crime José Joaquim da Silva Lobo.
O fato criminoso foi então submetido ao parecer do Júri de Acusação (que era composto de 23 jurados e foi abolido pela reforma de 1841), o qual proferiu o veredictum: “O júri achou matéria para acusação. Vila de Campo Maior, 6 de março de 1834”. Seguiam-se 23 assinaturas.
E o Juiz de Direito sentenciou:

“Proceda-se à acusação e siga-se nos termos da lei.
Campo Maior, 6 de março de 1834.
Antônio Duarte de Queiroz”.

A 14 de março compareceu o réu perante o Tribunal do Júri de Sentença, composto de 12 jurados, reunido no consistório da Matriz, sob a presidência do Juiz de Direito interino. O julgamento foi breve. Na acusação o promotor público, Manoel Alexandre de Lima Sênior, leu o libelo-crime-acusatório e frisou que se tratava de um réu-confesso, que desfechara na vítima um horroroso tiro de bacamarte, oculto numa emboscada preparada de véspera, com toda premeditação, mediante pagamento; que era, portanto, um desalmado criminoso profissional, que se alugava para matar; elogiou a vítima, cruelmente assassinada no próprio dia do casamento; e perorou referindo-se à viúva-donzela, a quem fora perversamente arrebatada a felicidade conjugal. O advogado Simão Lopes da Paz, nomeado pelo juiz, disse que procurara o réu para saber o que podia alegar em seu favor, tendo-lhe este respondido que não tinha defesa, pois que fora realmente o matador de Luciano.
Reunindo-se em conselho secreto, os doze jurados responderam aos quesitos e deram o veredictum unânime:

“o réu achava-se incurso no artigo 192 do título 2º da parte 3ª do Código Criminal, na pena de morte, no grau máximo”.

E o juiz presidente do Tribunal lavrou a sentença:

“Visto a unanimidade dos jurados, condeno o réu Estácio José da Gama em pena de morte natural.
Vila de Campo Maior, 14 de março de 1834.
Antônio Duarte de Queiroz”.

Logo em seguida foi Estácio recolhido ao oratório, servindo-lhe de confessor o padre Bento Antônio Fernandes, vigário da freguesia.
A execução teve lugar no dia seguinte, pelas quatro horas da tarde.
Saiu o tenebroso préstito, marchando à frente o porteiro do fórum, Manoel Gomes da Silva (que era o conhecido ferreiro Manoel Grazina), apregoando, em voz alta a sentença que ia ser executada. Marchavam em seguida, o Juiz de Direito e o escrivão. Vinha depois o sentenciado, assistido pelo padre Bento e enquadrado pelo destacamento composto de dez praças sob o comando do cabo Estanislau Paes Barreto.
Os sinos dobravam em sinal de finados.
O sinistro cortejo percorreu as principais ruas da vila, penetrou na Matriz, onde foi mostrada ao condenado a sepultura aberta para receber seu cadáver.
Chegando à Praça Santo Antônio, local da execução, foi o criminoso sentado em uma cadeira de pau colocada entre dois moirões fincados com uma braça de intervalo, aos quais foi ligado pelos pulsos.
Nessa posição Estácio falou:

- “Eu só matei a Luciano, porque a justiça de Quixeramobim me deixou impune pela morte que fiz na rua da Gamboa e pela tentativa de assassinato de Caeté” (referia-se a Luiz Raimundo Caeté Monteiro, que foi depois tabelião de Maria Pereira).
“Só lamento ir morrer por ter morto um, quando entre os que vão atirar em mim, há um que já fez oito mortes!”
- “Meus amigos, só lhes peço que não me deixem sofrer”.

Houve duas descargas de cinco tiros cada uma.

- “Consummatum est!” Murmurou o vigário.

O povo presenciou o espetáculo com tristeza; entre a assistência muita gente chorava.
Houve, de certo, muitas irregularidades nesse julgamento, que foi classificado pelos cronistas pósteros de “assassinato jurídico”.
Também foi o primeiro ensaio, naquele sertão da novel instituição do júri, recentemente inaugurada em todo o país.
O Capitão Antônio Duarte de Queiroz, juiz municipal, leigo. No interino do exercício de juiz de direito, era primo carnal e cunhado da noiva, viúva do assassinado, mas honesto e austero, como todos reconheciam, funcionou no processo simplesmente em obediência aos deveres do cargo, que exerceu com perfeita lisura. O seu erro foi não ter deixado correr o prazo legal de apelação, antes da execução da pena imposta pelo soberano tribunal do júri.
Censurado pelo presidente da província e processado pelo juiz de direito efetivo, sua defesa saiu triunfante: o júri de acusação, composto de vinte e três jurados, reconheceu não ter havido malícia, mas simplesmente desconhecimento de preceitos legais, estabelecendo o veredictum:
“Não há matéria para acusação”, sendo assim, impronunciado o íntegro juiz. E o próprio juiz de direito efetivo, o Dr. José Antônio Pereira Ibiapina, “que depois foi padre, missionário e morreu santo”, comunicando o fato ao presidente da província, reconheceu:

“Mandei processar o juiz municipal, mas o seu crime era ignorância e por essa razão foi absolvido no júri de acusação”.

Ignorância essa, aliás, justificável, era antes obediência às idéias correntes na época. O preceito indicado como desobedecido não constava no Código de Processo Criminal de 1832, e sim da lei de 11 de setembro de 1826 e do Decreto de 15 de novembro de 1827. Tais decretos não chegaram ao conhecimento dos patriotas então oprimidos e escorraçados, nem se vulgarizava no sertão, onde continuava a imperar a doutrina firmada pelos reiterados ofícios, do perverso ministro Clemente Ferreira França. Este, por ocasião das condenações dos revolucionários republicanos de 1824, havia determinado:

“as penas impostas pela Comissão Militar devem logo executar-se independentemente de subirem à presença imperial a buscar confirmação, ou perdão”.

E tanto era o sentimento geral naqueles tempos, que, um ano depois, em 28 de março de 1835, apareceu um decreto da Regência ordenando que:

“as sentenças de morte proferidas pelo júri contra os negros culpados, fossem imediatamente executadas, independente de subirem ao poder moderador”.

A mesma doutrina, quase nos mesmos termos dos célebres ofícios, apenas referia-se aos negros em vez de revolucionários.
Além disso, havia naquela época o sentimento exaltado de liberdade, e os jurados ciosos da “soberania popular do júri”, julgavam que suas decisões deviam ser consideradas como inapeláveis e não sujeitas ao beneplácito do poder imperial.
A censura e o processo provocados pelo açodamento com que foi aplicada a pena, aliás, justa e merecida, mostram apenas o zelo dos liberais, então no governo, pela boa aplicação das novas normas da justiça, que constituíam o seu mais puro ideal.
Assassinato jurídico!? Aprouvera a Deus que a justiça humana fosse tão honradamente aplicada!
João Cariri, o outro assassino, acusado pela morte do negociante foi condenado pelo júri à prisão perpétua, indo findar seus dias na Ilha de Fernando Noronha, então famoso presídio nacional.
No fatídico dia em que foram celebradas as enlutadas bodas, quando, ainda em casa do coronel Antônio Francisco de Queiroz Jucá (irmão de dona Joanna Baptista), em Quixeramobim, fazia-se o velório do corpo de Luciano, trazido para ser sepultado na Matriz, os Araújos, perante o cadáver, solenemente juraram vingança. Na mesma casa onde dois meses antes dona Joanna Baptista e Luciano haviam se encontrado pela primeira vez...
Do processo resultara um mandato de prisão contra o mandante do crime, que durante meses foi inutilmente procurado.
Só no inverno seguinte, quando já acreditava que seus inimigos estariam esquecidos, Miguel Carlos voltou à vida, onde se homiziou em casa de Antônio Caetano de Oliveira, casado com uma parenta sua.
Os Araújos, incumbidos de sua captura e avisados por um amigo, vieram tentar apanhá-lo.
Ao clarear do dia, quando Miguel Carlos, juntamente com alguns companheiros, tomava banho num poço do rio, seus perseguidores que se achavam ocultos no denso mata-pasto, levantaram-se de repente e marcharam sobre ele.
Os banhistas, surpreendidos, apanharam as roupas e correram em direção aos quintais das casas que marginavam o rio, tentando vestir-se às pressas ao longo do caminho.
No momento em que Miguel Carlos, apenas de ceroulas e empunhando uma faca, abaixava-se para passar pelo buraco da cerca de ramada de uma “vazante” existente na várzea, foi atingido por um tiro que lhe desfechou Manoel Araújo, irmão de Luciano, e caiu emborcado já agonizante, sem no entanto largar a faca. Quando seu inimigo, inclinando-se sobre ele, tentou virar-lhe o corpo para verificar sua identidade, o ferido num último arranco de ódio, vibrou-lhe uma facada certeira no pescoço, cortando-lhe a carótida.
Um corpo caído sobre o outro, ambos banhados em sangue, estrebuchando nas vascas da morte, apresentando o quadro horripilante de uma luta corporal entre dois cadáveres.


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